segunda-feira, 22 de junho de 2009

A arma de Milemete

Walter de Milemete, este nome evoca uma figura importante para a Oplologia e quase desconhecida no Brasil. Em um manuscrito de 1326 reputado como de sua autoria, intitulado "De Nobilitatibus, Sapientis, et Prudentia Regum" (“sobre a fama, sabedoria e educação dos reis") e apresentado ao Rei Edward III quando da sua ascensão ao trono da Inglaterra, aparece numa iluminura (reproduzida acima) a primeira representação visual conhecida de um rudimentar canhão (ou arma de fogo).

Milemete, pelas poucas informações que se tem dele, foi um Mestre, estudioso, eclesiástico e pároco no condado da Cornualha (situada na extremidade do sudoeste de uma península da Inglaterra), e seu famoso manuscrito destinado a aprimorar a educação do Rei Edward III (que sucedeu Edward II depois de seu assassinato em 1327), versando sobre temas gerais como filosofia, política, religião, virtudes morais, o bom governar, a administração pública, as artes da guerra, etc, está conservado na Biblioteca da Igreja de Cristo em Oxford. O texto era ricamente ornado com desenhos variados (iluminuras) mostrando heráldica, cenas de flerte, combates, torneios, caçadas, animais mitológicos e animais híbridos com o homem...

O desenho mostra o que alguns denominaram depois como a “Arma do Monge”, um pequeno canhão em forma de pêra ou vaso com quase um metro de comprimento, apoiado numa mesa sem fixação aparente (e o recuo?), disparando uma seta. O soldado que o maneja, usa um pedaço de ferro em brasa para inflamar a carga de pólvora (ou substância análoga).

Registros escritos de armas existem recuando mais no tempo, em datas como em 1281, o gentil-homem francês Giovanni D’ Appia (Reitor do Papa Martinho IV, enviado para sufocar o governo antipapal constituído pelos Gibelinos em Forli e Cesena), foi testemunha da incrível presença de “fusiliers ou schioppettieri” entre os soldados do famoso conde Guido de Montefeltro (de Urbino, Itália). Na mesma campanha na defesa de Forlì, Itália, durante o cerco que durou de 1281 a 1283 foram usados canhões apelidados de “os jarros de Forli”, certamente devido talvez ao seu formato de “pêra ou vaso”, que nos remetem de imediato a visualização da arma do manuscrito de Milemete. Este tipo de arma seria chamado pelos italianos pelo seu formato peculiar de “vasi”, e pelos franceses de pot-de-fer. Neste mesmo período (1326) o poderoso Conselho de Florença ditava as suas rígidas regras ao que parece, para a manufatura de canhões e balas de metal (“pilas seu pallectas ferreas et canones de metallo”). Em 1327 o mesmo Edward III usou canhões contra os Escoceses, e na Guerra dos 100 anos na batalha de Crécy em 26 de agosto de 1346, os ingleses teriam usado três canhões contra os franceses. Outra figura de um pequeno canhão aparece no manuscrito “Belli Fortis”, da autoria de Konrad Kyeser, escrito ao redor de 1400.

No tocante a armas que disparavam dardos ou setas como a mostrada na ilustração de Milemete, um manuscrito de 1338 (conservado na Biblioteca Nacional De Paris), cita que na cidade francesa de Rouen usaram-se "pots de fer à traire garros de feu" ou seja " panelas ou potes de ferro para atirar setas de fogo. Corroborando isso outros registros também falam de setas de madeira providas com penas de metal. São citadas no inventário real (English Privy Wardrobe) da Torre de Londres no ano de 1377, centenas de grandes setas metálicas com empenagem (cauda), provavelmente de estanho, ao lado de 22 canhões (e numa lista posterior arcabuzes ou mosquetes) que disparavam o mesmo tipo de projétil, os mesmos inventários da Torre de Londres citam ainda quatro" "moldes vocate formule pro pelletis infudendis", ou moldes para fundir as “balas” (vocábulo popular para projétil e derivado do verbo grego ballo – atirar, lançar, arremessar) como também 1348 libras de " Plumbi em pellottis" ou - 612kg de chumbo em pelotas. No inventário real de 1388 estão registrados 3 “parvos vocatos” (armas ou canhões de mão).

Uma arma bem semelhante à de Milemete seria a bombarda de Loshult, na Suécia (foto abaixo), datada como por volta de 1350, uma pequena miniatura de canhão de 30cm de comprimento em formato de vaso como o da iluminura.
Daí em diante aparecem os “handgonnes”, algo como “arma de mão”; no inglês arcaico Gonne = gun, arma. (que vem da palavra arcaica engyn, ou máquina), No idioma alemão tais armas primitivas eram chamadas “Faustbüchsen”, “Faustrohr”, hakenbüsche (literalmente “arma com gancho”, tendo esta denominação se popularizado e criado o posterior termo Arcabuz para armas mais modernas), "Büchss“ e “Büss, sendo estes dois últimos termos incrivelmente relacionados com a caixa de esmolas de madeira das igrejas!! Palavra provavelmente derivada do latim medieval Buxis (“caixa", que geralmente era feita com madeira de Buxo). Alguns dizem que pelo formato quadrado das coronhas de então, que teria alguma semelhança com a caixa de óbolos. Em dinamarquês medieval tais armas eram conhecidas por "Bösse".

A evolução natural levou as armas portáteis a mudar a forma de um pequeno vaso, óbvia redução em escala de uma bombarda maior, para tubos metálicos cilíndricos ou com facetas, alongados ou curtos, alguns equipados com ganchos (que deveriam ser apoiados nas muralhas e frestas dos muros dos castelos), e inseridos na ponta de um cabo de lança pra fazer fogo (e assim são vistos em vários desenhos e tapeçarias medievais), ou amarrados com tiras de couro ou metal a pedaços de madeira à guisa de primitiva coronha. Nesta conformação de arma com gancho, se apresenta o curioso hackenbüsche conhecido como “arma de Morko” da Suécia, com sua face humana barbuda e suas inscrições de motivos religiosos, e o de Vedelspang, em Schleswig, ou o cilindro curto achado no castelo de Tannenberg, ambos da Alemanha.


Tempos depois seriam incorporadas aos arcabuzes as verdadeiras coronhas de madeira envolvendo o cano a e culatra (inspiradas a princípio nos modelos usados nas bestas e balestras), as massas de mira, e em seguida a revolucionária chave de mecha ou serpentina (o “matchlock), que substitui com vantagens táticas e técnicas o infame uso do ferro em brasa ou um segundo operador portando um pedaço de madeira ardente para incendiar a teimosa carga de pólvora negra. Sobre este mecanismo, suspeita-se que foi concebido em Liége-Bélgica por volta de 1375, (embora o códice Vindobana, um manuscrito da cidade de Viena do início do Séc. XV, já ilustrava uma arma equipada com uma grande serpentina em forma de “Z”).


Com a evolução da primitiva metalurgia e os novos experimentos de pólvoras mais estáveis e melhores desenhos de câmaras de disparo, puderam finalmente as armas de fogo perfurar as armaduras (sendo estas reforçadas ao máximo, ao limite de maneabilidade do conjunto homem/cavalo). Os canhões destruiriam as paredes dos castelos, terminando por tornar seus muros inúteis. O arco, a balestra, a catapulta, foram paulatinamente sendo substituídos, e as armas de fogo envoltas no fumo da pólvora caminhariam então para a sua longa história, como companheiras de desdita do homem na sua saga pela terra, chegando à soberba sofisticação e precisão das armas dos dias atuais, que incluem até o titânio, cerâmica e polímeros em sua construção, coisa que Walter de Milemete jamais imaginaria quando desenhou para a posteridade a visão da experiência de um disparo de um tosco canhão apoiado numa frágil mesa...

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Oplologia e colecionismo.


Vista parcial de uma das vitrines do maravilhoso Museu de Armas de La Nación em Buenos Aires, exemplo soberbo de conservação do patrimônio e cultura de um povo.


Numa roda de amigos num quente final de tarde, no chamado “happy hour” regado a cerveja, é mais do que comum as conversas girarem sobre as atividades do dia, o trabalho, o jogo de futebol, a política, as notícias sobre a situação do país e do mundo. E no meio a tudo isso, sempre se encontra um tempo para as paixões em comum, a maioria das pessoas encontra no esporte a sua válvula de escape das tensões diárias, mas um pequeno grupo tem lá as suas paixões mais específicas. O homem tem certamente um “instinto acumulador”, as pessoas guardam de tudo, de tesouros a velharias e inutilidades, e em certos casos patológicos até... Lixo. Nesta mesma roda de amigos, poderemos encontrar talvez um colecionador de carros, um filatelista (colecionador de selos) um numismático (colecionador de moedas) e quem sabe até um oplólogo... Oplólogo? Que raios vem a ser isso?
Oplologia é um neologismo de origem inglesa e italiana, foi cunhado na Inglaterra no século XIX por Sir Richard Burton e deriva dos vocábulos gregos Hoplon - οπλον, e λογοσ – o logos, como conhecimento, ciência. “Hoplon” era o grande escudo levado pelos Hoplitas (ὁπλίτης), o soldado grego de infantaria pesadamente armado, servindo a mesma raiz para designar o conjunto completo das armas dos gregos (além da armadura, grevas, escudo e elmo, usavam a espada de fio duplo, e lança pesada). Ainda relacionado há o termo grego Hoplos, que designa um ser mítico que era couraçado.
A Oplologia no início foi relacionada com a arte e técnica marcial, ao uso das armas, e depois de 1960 com Donald Frederick Draeger, passa a ser a relacionada como campo acadêmico de maior abrangência social, podendo se definir como a ciência que estuda a arte do combate e da guerra, da Filosofia e do logos do guerreiro, da história e estratégia militar, incluindo-se aí certamente o estudo da artilharia, das armas de fogo, das armas brancas, da munição, das fortificações, e também servindo de auxílio para outras ciências sociais. Na Itália, a palavra oplologia foi usada também a partir do século XX para descrever o estudo das armas e armaduras, e não propriamente só da parte prática, a das técnicas de uso.
Oplólogo então é o pesquisador ou estudioso do tema, que deve ter o necessário rigor científico, com pesquisa e literatura, mas sem esquecer a paixão (oplofilia) que estes artefatos sempre provocaram nos seres humanos (ou ainda no outro extremo ódio e medo, tão atuais e debatidos – a oplofobia,).
O estudo, conservação e colecionismo das armas de fogo, muito nos revelam sobre a cultura e a tecnologia da época em que elas foram feitas. As análises profundas das características técnicas e sociais nos fazem vislumbrá-las além de simples instrumentos mecânicos, pois foram parte da sociedade, as mantenedoras de poder e status social de seus proprietários. Pode-se inclusive se dizer que a função social das armas era ser representante visual da opulência ou penúria de seus possuidores, assim, por exemplo, frente a uma pistola com fecho de roda ricamente decorada do séc. XVI saberemos logo que pertencia a um nobre alemão, pelo alto valor econômico e artístico ali empregado, ao passo que frente a um mosquete de mecha rústico e simples do mesmo período e região, saberemos logo que era pertencente a um lasquenete (mercenário) ou soldado regular, pela modesta e prática construção.
As armas de fogo e canhões representam mais de 700 anos da inventividade e engenhosidade humana. Em cada arma como já disse, estão inseridos dados da sua época histórica, da cultura do povo que a construiu, cinzelados e burilados em metal bruto, ouro e prata, estão entranhados a sensibilidade e a habilidade particular de cada artesão, o que em certos casos pode transformar cada peça em uma peça única e de valor inestimável. Não se podem dissociar as armas da história, dos personagens das grandes tragédias, dos dramas humanos e dos importantes fatos mundiais. As armas fizeram sua aparição na sombria idade média como criaturas mitológicas, verdadeiros dragões que vomitavam fogo e metal, surgidas nos caldeirões dos alquimistas, e paridas pela mistura malcheirosa da primeira pólvora se esgueiraram para o campo de batalha medieval, através dos primitivos canhões de mão que evoluíram acompanhando a marcha constante do progresso humano, e se infiltraram no inconsciente coletivo com a mesma força de seus projéteis, que silvando perfuravam armaduras e destronavam reis.
Assim se consolida a oplologia como ciência social para somar a outras já existentes, conjugada com a balística em suas diversas vertentes (balística interior, exterior, de efeitos e forense), que cuida do estudo dos projéteis, tendo esta nascido junto com as antigas balistas e catapultas da idade antiga, antes mesmo das armas de fogo.
O colecionismo de armas tem por objetivo a perpetuação da memória e da história do homem, vem somar possibilidades a criação de um mosaico completo das diversas facetas técnicas e sociais de um período, possibilitadas pela metalurgia, artes, ourivesaria, engenharia, marcenaria, marchetaria, arqueologia, sociologia, literatura e demais ciências e técnicas.
Colecionar armas é sinônimo de cultura, conservação do patrimônio, e responsabilidade, bem ao contrário do que hoje se prega no Brasil, que seria sinônimo de ignorância e violência. O colecionador antes de tudo é um técnico, um estudioso, um literato apaixonado pelo que faz, e não raras vezes, um lutador solitário que se impôs a responsabilidade de preservar a memória militar e social de seu país, mesmo na contramão de seu povo ou momento político, que apenas anseiam pelo esquecimento ou pela ignorância plena.

sábado, 6 de junho de 2009

A Pistola Parabellum No Imaginário Popular...Um estudo pseudo-psicológico



Em matéria de indústria e comércio, com o passar dos anos, algumas marcas escaparam da simples condição de objetos e passaram a ser sinônimos da classe de produtos a que elas pertencem (no Brasil são bem conhecidos exemplos típicos disso, como certa marca de cerveja, ou uma lâmina de barbear que designam respectivamente estes produtos). Outras ainda conseguem ultrapassar esta já importante condição de marcos sinalizadores, e chegam à condição de legítima lenda, se tornando em objetos de desejo, símbolo de status social, econômico, ou sinônimo de bom gosto (Freud explica?).
Entre as armas de fogo, esta nuance da psique humana também está presente. Assim teremos as armas mais caras, dignas de marajás indianos com apliques em ouro, prata, marfim, cheias de trabalho artesanal, feitas por encomenda em maisons tradicionais (como as espingardas da Holland & Holland), ou em afamados armeiros custom. Objetos cuja função social e psicológica mais compreensível, é a de demonstrarem socialmente a opulência, a riq
ueza, e o requinte (ou até o extremo mau gosto a depender do caso) de seu possuidor. Bem como as feitas de maneira descuidada, com materiais inferiores, de pouca tecnologia, próprias para as classes menos favorecidas e despojadas materialmente, chegando algumas a ser também marcos ou sinônimos de coisa ruim, de baixa qualidade.
Mas há outras que apesar de feitas em seqüência industrial, com acabamentos absolutamente normais entram para este rol seleto das “lendas de aço”, unicamente pelo apelo popular, ou pelas suas boas características técnicas de confiabilidade, ou pela construção cuidadosa (apesar de puramente comercial). Assim poderíamos citar as Mauser C-96 (chamadas de "mausa caixa de pau" por causa do seu coldre/coronha), as Colt 1911, as pistolas da FN, e dentre dezenas de modelos e fábricas que não citaríamos por ser enfadonho, a arma que agora nos ocupa, baseada na pistola Borchardt C-93 modificada e melhorada por Georg Luger, e transformada na pistola D.W.M. Parabellum em 1900 (conhecida também como Luger por causa do desenhista).
A temida e desejada pistola Parabellum entra na história oficial do Brasil em 1906, com um contrato do Governo Brasileiro com a firma D.W.M. - Deutsche Waffen und Munitionsfabriken (Sociedade Alemã de Armas e Munições), sendo encomendado naquela feita 5.000 pistolas em calibre 7,65mm Parabellum, com capacidade d
e 8 cartuchos, segunda trava de segurança na empunhadura, sem engate de coronha, cano de 4 3/4", e esmerado acabamento com oxidação brilhante de um lindo tom azul veludo.
Era a virada do século XX, sendo isso por si só bastante apelo comercial, técnico, e psicológico, pois as pistolas “automáticas”¹ significavam a últim
a palavra, afinal o debute do automatismo em armas portáteis era bem recente (iniciado com a experimental pistola Schönberger, em 1892), como vantagens visíveis portavam mais munição, e eram mais rápidas no tiro que os tradicionais revólveres. Temos talvez aí a primeira das pistas de seu sucesso subjetivo na cultura popular: a modernidade que representavam.
O potente e veloz, mas pouco efica
z em poder de parada, calibre 7,65 mm Parabellum, é logo seguido por um 9 mm mais eficaz já em 1902, e embora armas neste calibre não tenham sido adotadas pelo governo federal do Brasil (mas ao que parece a polícia da Bahia na época comprou algumas Lugers em calibre 9 mm Parabellum, e talvez outras, embora a falta de documentos de época seja um entrave a pesquisa séria), os civis sim, estes usavam muito estas armas em 9 mm, sendo as poucas 7,65 mm vistas em mãos de colecionadores nacionais eminentemente militares. Temos aí a segunda pista do seu sucesso centenário: Poder, tanto o poder subjetivo, o de usar a mesma arma que os representantes do governo usavam (tanto o federal representado pelo Exército Nacional, ou os estaduais representados pelas suas tropas policiais “volantes”), quanto ao poder palpável, real, obtido pela força dos disparos dos cartuchos dos calibres 7,65 mm e 9 mm Parabellum, mais potentes que os dos revólveres em uso corrente entre policiais e cangaceiros da época. Isso se fixou no imaginário popular como quase um axioma, que um disparo da Parabellum podia furar um trilho de trem, “olho de enxada”, apesar da excelente penetração que estas armas tinham, isso é um grande exagero, sendo desmentido até por testes práticos de uma revista de armas anos atrás.
Misturando-se a tudo isto, ainda temos a mítica do desenho, a empunhadura (cabo) possuía uma curva sinuosa, sensual, quase feminina, garantindo a ergonomia de uma pega adequada a mão do atirador, poucas vezes conseguida, mas muito imitada em outras armas. A própria exótica operação com o manejo do fe
rrolho subindo (o nome técnico de ação de joelho - ou “toggle-joint action” já diz tudo), mais o preço elevado da arma, pela cuidadosa fabricação e acabamento (mais um item adicionado à lista: status, riqueza), bem como a quantidade de modelos e opções, e estava feita em parte a receita do sucesso e da popularidade deste tipo.
Os diversos modelos da Luger puderam ser vistos em mão
s de todo tipo de gente, popularizou-se entre policiais e cangaceiros, que depois de 1930 usavam os modelos 1906 e 1908 – sendo que a pistola que Lampião usava quando foi morto era uma Parabellum P-08 de 9 mm (mas antes disso ao que parece, usava uma em 7,65 mm, e exigia toda a munição desse tipo que encontrasse). Essa Parabelum 9 mm de Lampião segundo dizem, foi comprada pelo mesmo na cidade de Capela no estado de Sergipe, em 1929 na casa comercial de Jackson Alves de Carvalho, sendo aparentemente a mesma arma que foi encontrada com ele em seu fim trágico em Angico [aliás na famosa foto das cabeças cortadas pode-se contar nada mais nada menos do que 7 pistolas Parabellum, sendo bem visível uma do mod. 1906, as outras menos visíveis pois estão coldreadas].
Também na famosa foto posada do chefe de bando Chico Pereira (reproduzida ao lado), homem de posses e intelecto acima do bandoleiro comum, um tanto fidalgo até) está bem visível na cintura dele uma enorme pistola Parabellum do mod. de artilharia de 1917 (com cano de 20 cm de comprimento, contra os de 10 cm das mais habituais P-08, este tipo foi usado pelos serventes da artilharia do exército do Kaiser alemão na Primeira guerra mundial, daí seu nome), inusual por estas paragens, embora em entrevista há muitos anos com um ex-jagunço dizia ele que haviam muitas Lugers de cano longo pelo sul da Bahia. Ainda sobre personagens que usaram as Parabellum, os Coronéis, seus jagunços e pistoleiros de aluguel também a apreciaram, tendo chegado ao meu conhecimento pelas divertidas estórias do meu finado Tio Zeca, que lá pelos anos 40 trabalhou na fazenda de um rico fazendeiro na fronteira da Bahia/Minas Gerais. Ele me contou que na casa da sede tinham caixas fechadas com dezenas de carabinas Winchester e 8 pistolas Parabellum, além de outras armas curtas! Para economizar tempo na hora de limpar eles simplesmente jogavam óleo por cima e fechavam a caixa, bem como a popular e hilária estória de um camarada que ao ir à casa de uma “mulher da vida” em Bom Jesus da Lapa (BA), guardou a pedido da desconfiada “moça” que o “atendia”, a sua Parabellum num Bocapiu (sacola de palha)... que não tinha fundo... Ao cair no chão a arma (que por certo como diz o povo estava com “bala na agulha”) começou a disparar sozinha até ficar sem munição (típico defeito de pistolas, numa peça chamada fiador), ambos ficaram agachados num canto do quartinho da “moça”, agarrados e muito assustados, já se isso foi verdade é outro caso...
Mas a realidade técnica longe do mito é bem outra. A bem dizer a Luger em parte não justificava a sua boa reputação (mundial, pois foi arma de coldre padrão de dezenas de nações, lutou nas duas guerras mundiais, e é uma das mais procuradas por colecionadores até os dias de hoje), sim, de fato é uma arma precisa, mas por causa de seu desenho peculiar era cara de se manufaturar, tolerava poucas variações nas cargas dos cartuchos, tinha muitas peças pequenas, era bastante sensível à poeira, gelo e lama encontráveis em quase todo teatro de operações, pois o mecanismo não é coberto por inteiro, o seu carregador tinha tendências a encravar no 2º cartucho por causa da inclinação da mesa elevadora e da mola fraca, e o 1º era muito duro de se introduzir manualmente, mesmo assim foi um tremendo sucesso de vendas.
Mas em nossas terras longe de tecnismos, a fama da lendária pistola corria de norte a sul, notadamente no Nordeste das primeiras décadas do século XX, onde entrou sorrateira no imaginário popular (o famoso Parabelo) como uma das estrelas principais de uma época tão difícil de medo e violência: O ciclo do Cangaço.

Debutou num ambiente onde a falta de esperança no futuro e na justiça transformava por vezes a apatia em revolta, em mote da vingança. Numa terra de homens e mulheres destruídos moralmente e materialmente pela pobreza e pela fome (há relatos de vendas de pessoas e até macabras histórias de canibalismo), onde a tragédia humana da seca diuturna, que fazia as caveiras dos animais branqueando no pasto inexistente, rir com suas mandíbulas desencaixadas, lembrando aos homens que os seus natimortos, os menores, e os seus mais velhos em breve os seguiriam na jornada da qual não se volta. A política e o poder asfixiante dos coronéis, a grilagem de terra, a imensidão das caatingas sem lei, a pretensa liberdade dos bandoleiros, e isso tudo num caldeirão social em ebulição, permeado por fanáticos. Creio modestamente que a junção destes fatores contribuiu para que o mito da Parabellum se perpetuasse como uma arma potente e bela, símbolo de status social, instrumento de morte precisa e de poder. Poder esse que era ao mesmo tempo opressor e transformador, pois se a Parabellum era a arma dos odiados volantes e coronéis, também era a do “Capitão” Virgulino Ferreira e dos cangaceiros.

Os projéteis das Parabellum, rápidos como o vôo do carcará, e mortais como a cascavel, percorreram os ambientes hostis (tanto o natural como o social) das caatingas, e suas histórias como arma coadjuvante nas mãos de homens que primaram pelo heroísmo, traição ou covardia, mantidas pela tradição oral, chegaram aos nossos dias fascinando os pesquisadores modernos, que evidentemente tem de peneirar o joio do trigo.


¹ Na verdade pistolas são armas semi-automáticas, esta incorreção se perpetua até hoje tanto no meio popular como na mídia pouco técnica.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Balística Interna: Operação em Armas Semi e Automáticas

Desde o surgimento das desajeitadas armas primitivas (os Hand cannons e Handgonnes), o maior problema para os projetistas de armamento sempre foi como obter a rápida repetição dos disparos. A antecarga era um processo lento e difícil, eventualmente quando numa caçada a aves, ou a caça pequena isso não seria um grande problema, mas com caça pesada avançando em direção do caçador a galope, ou em meio a uma batalha recebendo fogo inimigo isso deveria ser assustador.

O surgimento dos sistemas de retrocarga, com a introdução do primeiro e rústico antepassado do cartucho metálico, depois de inúmeros ensaios e sistemas frustrados, negas e certamente culatras explodidas, foi conseguido por Pauly em Paris no ano de 1812. A evolução natural com as modificações posteriores realizadas por Houiller, Lefaucheux (pai e filho), Flobert, dentre outros, viabilizou tempos depois a repetição rápida dos disparos e por fim o automatismo.

As primeiras experiências com armas de repetição semi-automáticas foram levadas a cargo pelo americano Hiran Maxim, que iniciou seus estudos modificando várias carabinas Winchester 1866 cal. .44 Henry (fraco para esta função) para disparo semi-automático, sendo que há quem diga que os Turcos teriam incorporado a algumas de suas unidades tal modificação em suas carabinas, utilizando-as na batalha de Plevna. Porém, o escopo de Maxim era o armamento militar pesado, tendo sido o criador da 1ª metralhadora automática.

A transferência dos sistemas de repetição manual para o automatismo ocasionou novos problemas na administração do recuo e no aproveitamento dos gases do disparo para a correta ciclagem do mecanismo (carga, disparo, extração, ejeção, recarga). Projetistas como Browning, Maxim, Krnka, Mannlicher, Roth, Petter, Schwarzloze, e inúmeros outros, criaram uma série de sistemas operacionais voltados e dimensionados as características das armas por eles criadas e quase sempre tendo em vista a potência dos cartuchos por elas empregadas.

Vamos de maneira resumida enumerá-los:

  1. AÇÃO DE RECUO DIRETO SIMPLES (Ou Fecho Por Inércia - “Blowback“). Ação do Tipo Desaferrolhada.

    De maneira simplista poderíamos dizer que este sistema usa a força dos gases da queima da pólvora de maneira direta contra a face do ferrolho para obter o seu recuo e funcionamento do mecanismo. Não há nenhum fecho mecânico propriamente dito que atrase a abertura do ferrolho a não ser o peso fornecido pela própria massa, a fricção do ferrolho, e a força oposta pelas molas recuperadora e do cão. Todos estes elementos em conjunto, se opõem e resistem à força do recuo e a estupenda pressão gerada pelo disparo, atrasando a abertura do ferrolho para a extração e ejeção da cápsula, até que a pressão do gás caía a níveis seguros, ou seja, quando o projétil abandona a boca do cano. Caso contrário, o recuo (vulgo “coice”) seria bastante severo e haveria problemas de rompimento de estojos e escape de gases incandescentes em direção ao rosto do atirador.

    Este sistema é o preferido para armas de baixa potência e pequeno calibre como as .22 LR, e 6,35 mm Browning, embora seu teto teórico de operação seja comumente o 9 mm Curto (380 ACP) e o seu equivalente soviético o 9 mm Makarov. Calibres mais fortes obrigariam a arma a ter um ferrolho com bastante massa (peso) e molas duríssimas, como ocorre nas Astra série 400, e pistola Jo-Lo-Ar, ambas armas espanholas no potente cal. 9mm Largo.

    Curiosamente este é o sistema operacional mais usado em submetralhadoras, mesmo usando calibres bem mais potentes como eram vários tipos de 9 mm mais antigos (sendo atualmente usado apenas o 9 mm Luger) ou o .45 ACP, a preferência para este sistema de operação é devido a simplicidade do desenho, e para armas deste tipo geralmente se usa a uma mola de recuperação bastante forte com um ferrolho relativamente pesado operando aberto Como nas MP-18, MP-28, MP-34, MP-40, Carl Gustav, Sten, Uzi, MAC-10, INA, e em dezenas de outros modelos.

  2. AÇÃO DE RECUO DIRETO SIMPLES RETARDADO (Inércia Retardada - “Delayed Blowback“). Ação do Tipo Desaferrolhada.

    A operação de inércia retardada também não é aferrolhada. Basicamente é um Blowback com a diferença de que o atraso da abertura da culatra é conseguido além do peso do ferrolho e molas, pela fricção entre peças mecânicas, massas de bloqueio, ou giro do cano sobre seu eixo através de guias ou canais helicoidais, que efetivamente exercem resistência contra o movimento inicial do ferrolho e contra as forças do recuo. Armas típicas deste sistema são a metralhadora Schwarzlose (com ressaltos no ferrolho que obrigavam o giro), a pistola Savage de 1915, onde o cano girava sobre seu próprio eixo, a famosa submetralhadora Thompson 1928 e seu sistema Blish de retardo através de fricção, e a pistola HK P9 com um sistema semi-rígido de trancamento por roletes na cabeça do ferrolho que se encaixam em depressões na armação retardando a abertura. Este sistema, aliás, é derivado do usado no fuzil automático Mauser Sturmgewehr 45, desenvolvido pela equipe do engenheiro alemão Dr. Ludwig Vorgrimmler na segunda guerra, que por sua vez se baseou no trancamento da metralhadora MG-42 [Este sistema ao que parece foi patenteado na Polônia por Edward Stecke em 1930] , foi reaproveitado nos fuzis CETME espanhóis, e posteriormente nos HK G-3 e demais, e na submetralhadora HK MP-5. Esta última com a vantagem maior para a precisão, de atirar com um ferrolho fechado.

  3. AÇÃO DE RECUO DIRETO SIMPLES RETARDADO A GÁS (“Gas-Delayed Blowback Ou Gas-Retarded Blowback“). Ação do Tipo Desaferrolhada.

    Como no sistema de recuo direto (Blowback) o recuo simples direto a gás retardado, opera pelo princípio do ferrolho aberto, sendo a abertura da culatra atrasada por uma parte dos gases (não confundir com o sistema gas operated) que são desviados por um orifício no cano para dentro de um cilindro com um pistão que exerce resistência ao sentido original do recuo.

    Pouco utilizado ainda, tem nas pistolas HK P7 e na Steyr GB, seus maiores expoentes.

  4. AÇÃO DE GASES DE AVANÇO (“blow forward”). Ação do Tipo Desaferrolhada.

    Ação com longo movimento de cano, geralmente desaferrolhada. Neste interessante e obsoleto sistema o ferrolho é fixo a armação, e o cano é que se move para frente durante o recuo!!! No seu movimento e deslocamento ocorre a extração e recarga dos cartuchos. Como expoente maior deste sistema cito a pistola projetada por Schwarzloze em 1908, que não possuindo nenhum sistema de atraso, sendo apenas do modesto calibre 7,65 Browning (.32 ACP) possuía um recuo brutal.

  5. AÇÃO DE RECUO DIRETO TOTAL CURTO (“Short Recoil“). Ação do Tipo Aferrolhada.

    A partir desta ação falaremos dos tipos aferrolhados ou seja com trancamento de culatra (“locked-breech”). Onde em geral o cano se prende mecanicamente ao ferrolho durante o percurso do recuo provocado pelo disparo.

    No recuo curto geralmente o conjunto ferrolho/cano recua solidário por um percurso menor que o comprimento total do estojo da munição que a arma dispara. De um certo ponto em diante o cano deixa de recuar sendo retido em seu percurso mecanicamente por uma peça qualquer, e o ferrolho continua seu deslocamento extraindo, ejetando o cartucho vazio e recolocando outro proveniente do carregador ou magazine. Este movimento de recuo pode ser linear como nas Luger, P-38, Beretta 92, ou ainda vertical trabalhando em um eixo basculante de uma biela (Colt 1911) ou plano inclinado (FN 35, MAS 35). Na Steyr 1911 o cano recua cerca de 33 mm, e ainda gira sobre seu eixo.

    As diferenças entre os diversos designs de sistema condicionam a velocidade de desaceleração do conjunto cano/ferrolho e seu destrancamento.

    É um tipo de ação usado em armas de grande potência, inclusive nas metralhadoras Browning cals. .30 e .50 (7.62 e 12.7mm) onde nestas, depois de desaferrolhar, existe um acelerador de inércia para o retorno do ferrolho.

  6. AÇÃO DE RECUO LONGO (“Long Recoil”). Ação do Tipo Aferrolhada

    Como no sistema de operação de recuo direto de gases com recuo curto do cano, no recuo longo o ferrolho também recua solidário, porém por uma distancia maior que o comprimento do cartucho disparado, recuando travado com o ferrolho até a parte final do percurso.

    Armas com este sistema geralmente têm molas recuperadoras distintas e independentes para o ferrolho e cano. Estes sistemas tendem também a ter um tempo de ciclo mais longo, mais lento, pois ao final do curso do recuo o cano volta pela ação da mola a sua posição original, extraindo e ejetando assim a cápsula vazia, ficando o ferrolho temporariamente retido por um trinco, quando finalmente retorna a sua posição recarregando a arma.

    Este sistema se acha mais em peças de artilharia, sendo pouco utilizado em armas leves. Exemplares típicos são a espingarda semi-automática Browning, e as pistolas Frommer 1912 e Mars, e a metralhadora Madsen.

  7. RECUO INDIRETO DE GAS (“Gas Operation“). Ação do Tipo Aferrolhada

  8. O recuo indireto de gás tornou-se popular em ações de uso militar depois da segunda guerra. Uma parte da coluna de gás que acompanha o projétil durante seu deslocamento pelo interior do cano é desviada por um orifício e conduzida para um conduto ou canal, onde movimenta um pistão ou êmbolo, ligado ao ferrolho por uma haste, transferindo assim a energia do movimento ao porta-ferrolho movimentando o mecanismo.

    Um detalhe importante no desenho da admissão de gás no cano, é que o evento desta deve ser bastante distante da culatra, para assim permitir que a pressão caia a níveis seguros antes da culatra começa a abrir.

    A maioria dos desenhos atuais usa sistemas de trancamento por ferrolho rotativo, onde a cabeça do ferrolho efetua um giro, trancando-se em ressaltos escavados na armação, até começar seu movimento inverso para destrancar a culatra.

    É a ação preferencial dos modernos fuzis de assalto, como o M-16, AK -47, Galil, Valmet. e metralhadoras como M60 e M249.

  9. OPERAÇÃO POR INÉRCIA (“Inertia Operation”). Ação do Tipo Aferrolhada.

    É um sistema no mínimo curioso. Usando como base da ação a operação a gás, usa a inércia provocada pelo disparo e a massa da arma de uma certa forma como componente do mecanismo. Particularmente hoje utilizado em espingardas da Benelli (sistema Inertia Driven®) e Franchi. Na Benelli, o ferrolho se divide em duas partes unidas por uma mola bastante dura (corpo do ferrolho, mola de inércia e cabeça de ferrolho rotativa), e cano fixo a armação. No momento do disparo uma parte do ferrolho permanece inerte, enquanto que o recuo da arma fecha as duas partes do ferrolho, transferindo energia e comprimindo a mola intermediária entre a cabeça e o corpo do ferrolho, sendo que a energia e a compressão da mola auto-regula a ação. O corpo de ferrolho destranca a cabeça rotativa que recuando, extrai e ejeta o cartucho vazio, arma o martelo e comprime a mola de retorno, que se estendendo empurra o ferrolho de volta a câmara, retirando um cartucho do magazine iniciando um novo ciclo.

    Esta ação é incrivelmente rápida, vangloriando-se a Benelli de ter atualmente uma das mais rápidas espingardas semi-automáticas do mundo. Sendo memorável a impressionante foto em um de seus catálogos, onde quando o ultimo cartucho é ejetado, o estojo vazio do primeiro disparado nem tocou o solo ainda...

    É aconselhável o uso de munição do tipo Magnum, embora o uso de outros tipos não seja proibido, deve se observar o recuo mínimo para comprimir a mola e ciclar corretamente o sistema, sendo interessante que se a massa da arma não recuar, como quando a arma está apoiada contra o solo, não recuará para operar o mecanismo com segurança.


O Revólver Guerriero

Bem, costuma-se dizer que o mundo é dos mais espertos, certo? Via de regra isso é verdade, pois quem tem uma dose maior de imaginação, determinação, malícia, ou mesmo má fé, consegue por vezes ter sucesso, mesmo que tenha levado a fama por algo que não fez ou inventou. Assim veremos um aeroplano ter de ser catapultado para “voar”, e tudo isso sem testemunhas. Internacionalmente os irmãos Wright ficaram com a fama de inventar o avião em detrimento ao feito histórico do nosso patrício Santos Dumont, que decolou em Paris frente a centenas de testemunhas.

Da mesma forma se sucede no mundo das armas de fogo. A primeira pistola semi-automática (Borchardt) é fato sabido, não foi a “primeira”, sendo a austríaca Schönberger (patenteada em 1890) a ter esta primazia, embora não tenha sido produzida em grandes quantidades com pouco sucesso comercial. Reza a lenda que a primeira arma a usar o tambor basculando lateralmente (swing out) foi um revólver de fabricação da Colt (dizem que Samuel Colt teria tido a idéia da sua arma, ao ver um dos modelos do primitivo revólver de pederneira de Elisha Collier, lançados décadas antes de seus modelos Paterson – armas de tambor, aliás, são comuns na história medieval ainda em sistema de mecha) em 1889, certo??? Mas... E se eu dissesse que há indícios de que uma esquecida (e pouco conhecida) arma teria lançado o sistema ainda no tempo dos Lefaucheux? Espantados? Esta arma jurássica que protagonizou um sistema de extração e remuniciamento que ainda hoje não tem rival para os revólveres se chamava revólver Guerriero.

O revólver Guerriero (desenho do autor)

Em princípios de 1860, Alexander Guerriero, Conde de St. Ange, patenteia na Itália um revólver desenhado por ele conhecido depois como revólver "italiano". A arma chegou a ser aprovada pela comissão da Regia Marina Italiana, e reconhecida com um prêmio do Instituto Real da Lombardia, mas como seus esforços para produzi-la foram infrutíferos, transfere-se então para Liège, que na época já é um centro de importância vital na produção de armas de fogo, onde a sua arma, será manufaturada por Breuer (provavelmente Eugene Breuer, de Liège, operava no nº 86 da Rue Louvex – aliás, na arma se estampava na lateral direita à frente do tambor: Sistema Italiano e uma punção com um brasão no qual estão contidas as iniciais do nome do inventor e o de Breuer). Na mesma época a arma é patenteada na Inglaterra sob nº 628/1863.

Os militares franceses se interessam pela arma prevendo talvez uma possível substituição aos então regulamentares revólveres Lefaucheux 1858. Vários revólveres são testados pela comissão de testes de Vincennes no período entre 1864 e 1865. Para proteger sua invenção Guerriero deposita em Paris em 1866 a patente do seu sistema sob o N° 71.326. Finalmente em 1869 a comissão de testes acaba com as pretensões de Guerriero, encerrando as provas com o veredicto desfavorável à arma: apesar das inovações, o mecanismo era frágil para uso militar, com tendência a emperramentos e com uma ação dupla muito dura, sendo a arma muito pesada (1.500g).

Mas finalmente, que arma era esta? No geral tratava-se de um revólver tipo Lefaucheux de armação fechada, de construção bastante sólida (sendo isso já um grande diferencial dos concorrentes de então, que usavam em numerosos casos armações construídas em mais de uma peça e open top), municiado com cartuchos de pino de calibre 15 mm. A grande novidade estava NUM TAMBOR BASCULANTE À DIREITA (como seria curiosamente usado anos depois no revólver d’ordonnance modèle 1892, e em vários outros modelos franceses e belgas), retido por um pino colocado à frente da armação, havendo uma vareta pra expulsão dos cartuchos, mantida travada por uma mola debaixo do cano. Na parte traseira do cilindro havia uma espécie de placa circular do mesmo diâmetro, com uma dobradiça e contendo uma mola que a abria automaticamente descobrindo as câmaras, no momento em que o tambor era deslocado da sua posição original. Esta peça circular recobria o culote dos cartuchos protegendo os pinos (espoletas), e ainda continha em seu corpo a catraca para proporcionar o giro. O cão atravessava um grande escudo de recuo, que aumentava a proteção dos cartuchos contras choques (as armas do tipo Lefaucheux eram muito chegadas a disparos acidentais em quedas), tendo ainda uma posição “half-cocked” utilizada na hora de municiar a arma.

Depois do rápido ocaso de suas pretensões militares, o revólver "italiano" terá como destino o mercado civil, com uma grande variedade de tamanhos, calibres, e acabamentos, terminando por desaparecer silenciosa e injustamente nas brumas da história. A maior (e talvez única) virtude desta arma, o seu sistema de tambor basculante, foi esquecido depois do fim deste, embora possamos citar como contemporâneo o revólver de Warnant “Le Regent” patenteado já em 1885, com tambor basculando também a direta. Esta arma foi fabricada na Bélgica por Jean Warnant, e na Espanha em Eibar, por Domingo Alberdi em 1885. (o uso de tambor abrindo à direita seria moda da época? Ou necessidade dos cavalarianos que usavam a mão esquerda para usar a arma de fogo? Pois na direita se usava o sabre). Mais de 20 anos depois, a empresa americana Colt compraria a patente de um jovem engenheiro chamado Borchardt, lançando em 1889 com estrondoso sucesso “o primeiro” revólver do tipo "swing out", ou seja, com tambor rebatível lateralmente.

Fábricas Antigas do Brasil: A Caramuru

Caramuru era o apelido de um famoso personagem da história do Brasil, Diogo Álvares Correia (nascido em Viana do Castelo, Portugal, 1475, e falecido em Tatuapara, na Bahia, em 5 de outubro de 1557). Foi um náufrago português que segundo consta, assustou os índios que tentavam aprisioná-lo, com um disparo de seu arcabuz, sendo chamado de “Caramuru” (dentre tantas traduções românticas “deus do trovão”, “homem do trovão“), embora novas pesquisas apontem que o nome Caramuru se referia na verdade uma espécie de agressiva moréia, uma espécie de peixe ósseo, angüiliforme, da família dos murenídeos. Caramuru passou a morar entre os índios, e até casou-se com uma a índia: Paraguaçu. Foi o primeiro português a residir em terras do estado da Bahia, em 1510.

A famosa marca comercial da Caramuru, presente também nos fogos de artifício.

Caramuru é ainda considerado por muitos como o fundador do histórico município baiano de Cachoeira, situado as margens do rio Paraguaçu (e vizinho ao município de São Félix, duas cidades dividas apenas pelo rio, e unidas por uma ponte inglesa de ferro armado, feita a mais de 100 anos).

A marca de comércio CARAMURU foi usada pela F.A.M- Fábrica De Armas Modernas (empresa distinta dos originais fabricantes dos fogos Caramuru, de quem adquiriu o direito de usar a marca e alguns projetos já prontos), que era de propriedade do empresário e designer Miguel Raspa. Atuou nas décadas de 60 e 70, na cidade de Jacareí, interior do estado de São Paulo, produzindo neste período bons revólveres com a armação em aço.

Revólveres no cal. 22 Long Rifle :

  1. Modelo R1, dotado de cano octogonal de 2,6 polegadas (os canos destas armas tinham 5 raias e eram forjados pela Chapina), com a liberação do tambor feita por um pino situado diretamente no retém do cano, travando a “caneta” do extrator. A capacidade do tambor era de 7 tiros. Revólver R1, em calibre .22LR

    Revólver R1, em calibre .22LR

  2. Modelo R7, basicamente o modelo R1 redesenhado, com empunhadura mais larga, e liberação do tambor efetuada por um botão deslizante, na lateral. Houve mudanças no desenho dos canos, que passaram a ser redondos ao invés do perfil octogonal. Os canos deste modelo tinham comprimentos que iam de 1 até 6 polegadas. Revólver R7, também em calibre .22LR

    Revólver R7, também em calibre .22LR

Revólveres no cal. 32 S&W Long :

  1. Modelo R6, com canos variando de 2 ou 3 polegadas de comprimento, capacidade de 6 tiros.

Armas longas :

  1. Carabina modelo K1, calibre .22 LR e capacidade de apenas 1 tiro.
  2. Carabina modelo CLK, calibre .22 LR, estranhamente dotada de alma lisa, e capacidade de 1 tiro.

  3. Carabina modelo K5, também em calibre .22 LR e com ação de ferrolho tipo Mauser, capacidade de 5 tiros. Os canos desta arma eram feitos em Itajubá, subcontratados pela Imbel.

  4. Espingardas de caça conhecidas como modelo 62, de 1 tiro, com cão externo, em calibres 28, 32, 36, e 40. Curiosamente estas armas eram sub-contratadas e produzidas pela empresa Fundição LERAP.

  5. Espingardas de pressão em calibre 4,5 mm.

A empresa fez, também, algumas armas que não passaram de protótipos, tais como o revólver R3 em calibre .38 SPL , bem como uma submetralhadora, baseada no desenho da UZI (de fabricação israelense), em cal. 9mm Parabellum.

Parou de produzir armas de fogo em meados da década de 1970, passando a produzir desde então, peças de automóveis.

Fábricas Antigas do Brasil: A Lerap

A Fundição e Indústria de Armas Lerap foi registrada na Junta Comercial do Estado de São Paulo em 16 de junho de 1939 com o escopo de produzir peças em aço e ferro, canos e tubos, torneiras, válvulas e artigos domésticos com acabamento estanhado ou esmaltado. Situava-se na cidade de São Paulo, no bairro do Brás, próximo à antiga Estrada de Ferro Central do Brasil.

A Lerap foi uma das mais antigas fábricas de armas do Brasil e segundo consta, LERAP é a abreviatura do nome dos alemães que a fundaram, Lemcke e Rapp.

A Lerap é uma das grandes incógnitas da indústria nacional, dela não se tendo absolutamente nenhuma informação. Em 1942 já há uma solicitação de autorização para exportar modestas espingardas de antecarga de um cano, de alma lisa, bem como 100 ouvidos para reposição, a ser enviados para o Equador, com anuência do Sr. Ministro Da Guerra.

A Lerap fabricava garruchões e espingardas de caça de cano simples em vários calibres (usavam um sistema de trancamento idêntico ao das espingardas belgas “Leclerc”, com a chave serpente ou “Snake Key” parecendo ser uma possível cópia deste modelo), garruchas de dois canos (do tipo tradicional com canos paralelos, com o mérito de concorrer na época com diversos produtos importados, notadamente da Bélgica e Espanha) nos calibres .320 e .380, de pólvora negra.



A garrucha Lerap em calibre .320

A Lerap também chegou a fabricar espingardas sob encomenda para a fábrica de armas Caramuru. No final de sua produção ainda tentou produzir algumas armas mais bem cuidadas que os seus tipos tradicionais, como espingardas de canos sobrepostos com coronhas no estilo inglês, monogatilho, e réplicas das clássicas pistolas de bolso tipo Remington Derringer, que creio não passaram de protótipos. Encerrou suas atividades por volta de 1964.

reclame publicitário de época mostrando perfil da espingarda Lerap

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Fábricas antigas do Brasil - I.N.A


A história da Indústria Nacional de Armas é no mínimo bem colorida, e começa longe do Brasil no início da Segunda Guerra Mundial, quando os alemães invadiram a Dinamarca. Nesta oportunidade lá estava, em missão técnica, um oficial do nosso Exército: Plínio Paes Barreto Cardoso. Os dinamarqueses confiaram a ele alguns projetos de armas (inclusive o de uma metralhadora leve), que são trazidos por ele ao Brasil, para longe das mãos dos nazistas. Finda a Guerra, restituídos os projetos, o Dansk Industri Syndikat cede por gratidão os direitos da submetralhadora Madsen modelo 1946. Assim em 1949, presidida pelo então General R-1 Plínio Paes, é fundada a Indústria Nacional de Armas - INA, no bairro de Utinga, na cidade de Santo André, Estado de São Paulo.


A sub-metralhadora INA, em calibre .45ACP, adotada pelo Exército Brasileiro, com sua coronha articulada na posição aberta (foto: Manual de Operação EB-1956)

O carro chefe de sua produção sempre foi a submetralhadora M1950 (uma modificação da já citada Madsen M1946, sendo as diferenças principais da original dinamarquesa a mudança do calibre, de 9 mm Luger para o 45 ACP, embora isso não fosse propriamente um problema, pois dizem que a própria Madsen fez protótipos nesse calibre. Além disso, a alavanca de manejo foi transferida da parte de cima da culatra para a lateral direita. Posteriormente surge o modelo 53, com o alojamento do carregador mais longo e reforçado. Estas armas foram padrão, por longos anos, no Exército (de 1950 a 1972) e nas polícias brasileiras. A sub-metralhadora INA possuía uma cadência de cerca de 600 tiros por minuto, não tinha dispositivo de tiro seletivo e funcionava com o princípio de ferrolho (culatra) aberto (embora a sua relativamente baixa cadência de tiro permitisse que um atirador, com certo treino, desse rajadas curtas; bastava para isso ter alguma intimidade com o gatilho da arma).

A arma também não permitia o disparo com uma só mão: uma tecla de segurança, posicionada junto ao retém do carregador, tinha que ser pressionada com a outra mão, obrigatoriamente, para que a arma disparasse. O peso da arma era de 3,400 Kg, comprimento total de 74,9 mm e comprimento de cano de 214 mm.

Ainda deve-se ressaltar que esta submetralhadora granjeou uma fama, digamos que injusta, entre os seus usuários, de ser pouco confiável em ação, pois em seu uso ocorriam muitas falhas de tiro (negas), chegando ao ponto de que as iniciais do fabricante (I.N.A.) se tornaram uma cruel alcunha: "Isto Não Atira". Verdade seja dita, a culpa era da munição .45 ACP nacional, de baixa qualidade, munição esta que inclusive acompanhou a arma quando da sua entrega às forças policiais, piorando assim a fama da arma, devido à idade dos componentes dos cartuchos.


Vista explodida da arma, onde se nota a extrema simplicidade. A armação é de aço estampado, que se abre em duas metades articulada pelos mesmos parafusos que fixam a coronha, de tubo de aço. A troca de cano nesta arma era operação bastante simples.

Revólver INA em calibre .38SPL, modelo de exportação para a Interarms, USA

A Indústria Nacional de Armas se destacou na produção de armas que ficaram bem populares no Brasil, como a conhecida série dos revólveres “Tigre”, baseados no design dos Smith & Wesson mod. 10 (Military And Police), em calibre .32 S&W Long, com várias versões da localização do desenho do citado felino, na lateral da armação, variando ora para o lado esquerdo, direito, ou de frente (ironicamente, o “Tigre” era chamado de tudo, menos tigre: ”onça”, ”leopardo”, “pantera”, ou coisa pior: “gato”, nos meios mais leigos).

A partir de 1966 surgem os raros exemplares em .38 SPL com 2, 3 ou 6 polegadas de cano, sendo bastante exportados principalmente para o mercado norte-americano. Na época, haviam muitas restrições dos militares quanto aos calibres para uso pelos civis no Brasil, mas mesmo assim a INA chegou a produzir protótipos de um revólver em calibre .357 Magnum que, infelizmente, não chegou a linha de produção normal.


AS PISTOLAS INA


A INA Chanticler, em cal. 6,35mm Browning (.25 Auto) - desenho do autor

A INA fabricou também uma pistola semi-automática de ação dupla, o modelo "Chanticler", que na verdade era uma versão com algumas modificações da pistola CZ-45, da afamada firma tcheca Česká Zbrojovka, e no mesmo calibre da original, o 6,35mm (uma versão maior desta arma, em 7,65mm, não saiu do protótipo). Curiosamente, Chanticleer ou Chanticler é o nome de um galo esperto que aparece nas fábulas medievais dos “Contos de Canterbury” - tal como em “Chanticleer e a raposa” e, de fato, a marca de um galo estilizada aparece estampada no plástico da tala de empunhada esquerda desta pistola.

Outra curiosidade sobre a Chanticler era que o 1º tiro (e apenas ele) poderia ser em ação simples, sendo os subseqüentes obrigatoriamente em ação dupla.

Derivada dela houve também uma versão melhorada, originalmente destinada para exportação aos EUA. Esta versão, que usava a marca comercial "Tiger", possuía uma trava de desmontagem no meio da armação, sendo que seu desenho foi, na verdade, uma adequação às novas e rígidas regras norte-americanas do Gun Control Act de 1968. A INA fabricou também alguns (raros) exemplares desta arma que foram destinados às vendas internas.

Outra lenda urbana (ou não?) corrente entre os colecionadores seria que a INA teria fabricado protótipos de pistolas tipo Colt 1911 em .45 ACP, embora não se conheçam fotos ou o paradeiro das mesmas...

A CZ-45, fabricada na atual República Checa, cal. 6,35mm, na qual a INA Chanticler foi baseada.

O fim das atividades da INA, em 1972, foi inglório. A fábrica, que no final da produção ocupava também um terreno em Ribeirão Pires, foi lentamente estrangulada por dívidas, insolvência de órgãos públicos (existem até teorias que “forças ocultas” governamentais fizeram de tudo pra evitar que a INA sobrevivesse), e sem poder mais exportar, acabou falindo.

Winchesters a La Paella

A Espanha sentia, no início da década de 1880, uma urgente necessidade de procurar novas armas para substituírem as suas regulares, que no momento eram milhares de fuzis e clavinas de retrocarga e tiro simples, como os Remington rolling block e outros modelos com mecanismo do tipo Peabody e Berdan de alçapão.


A Tercerola Winchester modelo 1873

A Cia. Winchester, habilitando-se à concorrência, apresentou ao militares espanhóis algumas versões de seu modelo 1873 (conhecida por “papo amarelo” aqui no Brasil), sendo que as seguintes variantes dessas armas eram um fuzil deinfantaria, uma carabina para uso da cavalaria e um mosquete para uso das tropas de artilharia e corpos auxiliares. Como sempre, a rapidez de tiro e a facilidade de municiamento agradaram, mas o mecanismo “toggle action” foi considerado delicado para o uso militar.

Ao que parece, mesmo que as dúvidas prevalecessem, a arma havia agradado. Assim, em 1879, chegam 230 unidades; esta versão tinha cano de 22 polegadas, pórtico de carregamento com um rebaixo à frente, telha integral cobrindo o cano quase até a ponta, ponteira de metal na frente da telha, que abrigava uma inusitada vareta de limpeza metálica inserida no interior do fuste, sendo este o único modelo da Winchester com esta característica (consta como listado no catálogo da fabricante como “modelo espanhol”), e não portava baioneta. Outros 100 mosquetes, com o mais tradicional cano de 30 polegadas chegaram em 1891. Todas estas armas eram em calibre 44-40 (44 WCF).

Os espanhóis não utilizariam a arma americana nas tropas de 1ª linha, pois os seus testes deram correta preferência ao fuzil Mauser como arma longa regulamentar. O modelo “Turco/Belga” de 1889 foi adotado em 1892, com as modificações requeridas, que dariam origem à soberba arma conhecida como Mauser modelo espanhol 1893 (praticamente o mesmo modelo que seria adotado pelo Brasil, ligeiramente modificado, em 1894).

Para não fugir a regra, em 1891, iniciava-se a fabricação sem compra de patente ou direitos, de uma cópia espanhola da Winchester 1873, ficando a manufatura a cargo da Real Fábrica de Oviedo, com uma produção, segundo consta, de mais ou menos 2.500 unidades no período 1891/92 (daí a marcação “Artillería - Oviedo 1892”).

Alguns autores preferiram chamá-la de carabina do sistema Winchester modelo 1876, pois esta já reuniria algumas características dos mosquetes do posterior modelo Winchester 1876, embora o modelo original NUNCA tivesse usado o calibre 44-40. Este (1876) era, na prática, um modelo 1873 com caixa de culatra “esticada” para comportar calibres mais longos e com maior energia cinética como o 45-60 WCF, 45-75 WCF, e o 50-95 WCF, a denominação oficial [1] era “Tercerola Winchester Modelo 1873”. As armas seriam destinadas ao 14º Tercio da Guardia Civil (substituindo a tercerola Remington mod. 1871) e a Escolta Real (uma fonte militar espanhola ainda cita a Seção montada do Colégio de Guardas Jovens de Valdemoro.)

Nos aspectos gerais, o funcionamento e a aparência eram de um mosquete Winchester 1876, excetuando-se, claro, alguns detalhes.

O cartucho conhecido na Espanha como 10,6 mm para Tercerola Winchester (os espanhóis, em alguns casos de armas oficiais, curiosamente ligavam o nome do cartucho a arma que o disparava; assim não teremos o .44 Winchester, mas sim .44 para carabina Winchester, bem como 9 mm para a pistola Campo Giro e não 9 mm Campo Giro, etc). As características gerais desta munição eram praticamente as mesmas do cartucho original 44-40, com projétil de chumbo e carga de projeção de pólvora negra condizentes. Vale dizer que este cartucho inaugurou na Espanha a era dos cartuchos metálicos de base sólida integral ao estojo (e não encaixada e depois soldada), diferenciando-se pela maior segurança no momento do disparo de outros tipos usados anteriormente (como os Berdan 11 mm, Remington 11 mm, e os do revólver 1884).

Apesar do modelo 1873 usar cartuchos originalmente de pólvora negra, segundo dizem, a sua robustez permitia o uso de cartuchos carregados com pólvora sem fumaça.

Suas características técnicas eram:

  • Comprimento: 985 mm
  • Comprimento do cano: 559 mm (22 pol) de formato cilíndrico.
  • Peso: 3,46 kg
  • Calibre: 10.6 mm (44-40)
  • Capacidade do carregador: 10 cartuchos.
  • Raias: 5 helicoidais
  • Alça de mira: De corrediça graduável de 200 a 800 metros.
  • Sistema de funcionamento: Ação de Alavanca (lever action) semelhante ao sistema da Winchester Modelo 1873, mas com características da caixa de culatra aparentadas ao da carabina Winchester modelo 1876.

A carabina Tigre


A carabina de repetición "Tigre" era uma cópia, com certas modificações, da carabina Winchester modelo 1892. Foi produzida com algum sucesso pela firma Gárate, Anitúa y Cía de Eibar, a partir de 1923. A principal diferença residia na alça de mira, que parecia com a da carabina Mauser espanhola 1895, de regulagem “corrediça” graduada até 1000 m, bem como a massa em “V” invertido, montada sobre a braçadeira do cano; interessante notar que aparecem, as vezes, algumas versões com a massa de mira colocada no cano e a alça de mira em degraus, mais similar a das Winchesters ( o que nos levaria a pensar que houveram diversas versões no tempo que a arma ficou em fabricação?). Foi bem popular na Espanha para caça e defesa rural, sendo usada inclusive pela Guardia Civil, Policía de Ferrocarriles, e Corpos de Guardas Juramentados.

Detalhes da massa de mira e braçadeiras em versões diferentes: a variação da direita possui a mira montada na própria braçadeira.

Foram exportadas também para alguns países da América do Sul, inclusive o nosso, e até para os EUA. O calibre era o mesmo do modelo original: .44-40/44 WCF, conhecido na Espanha pela denominação civil de 44 Largo (longo). Mas deve-se ressaltar que nesta época já eram carregados com pólvora sem fumaça. Comenta-se que seria uma boa cópia, bem robusta e mais barata que a inspiradora. Apesar de difícil de ser ver, não é impossível de se encontrar no Brasil um exemplar em bom estado mecânico, mas a oxidação certamente estará apenas sofrível. Na arma se encontra marcado: "Garate Anitua y Cia Eibar-Espana. TIGRE 44L”. Em alguns modelos ao que parece haveria a figura de um felino estampado na caixa da culatra.

Portanto, boa sorte e boa caçada; se encontrar uma, você terá uma Winchester sabor paella.


Vista lateral da arma.

Suas características técnicas eram:

  • Comprimento: 950 mm.
  • Comprimento do cano: 510 mm (20 pol. como padrão, mas ao que parece foi produzida em diversos comprimentos) de formato cilíndrico.
  • Peso: 2,5 Kg
  • Calibre: 44-40
  • Capacidade do carregador: 12 cartuchos.
  • Raias: 6 dextrógiras
  • Alça de mira: De corrediça graduável até 1000 metros.
  • Sistema de funcionamento: Ação de Alavanca (lever action) semelhante ao sistema da Winchester Modelo 1892.

[1] Pela Real Orden (R.O.) de 2/12/1893.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

O desconhecido e "perigoso" calibre 9mm Kurz


O calibre .380 ACP (Automatic Colt Pistol) já é antigo conhecido de todos aqui no Brasil (ou ao menos deveria ser), pois seu uso para civis foi liberado no final de década de 1980. Este cartucho foi desenvolvido pelo famoso projetista John Moses Browning, tendo feito seu “debut” no mercado americano com a pistola Colt mod. Pocket Auto de 1908 (que derivava da Colt Mod. 1903 em calibre 7,65 mm, outra munição popular de Browning), e na Europa foi lançado com a belga FN Mod. 1910, no ano de 1912.

Foi introduzido como munição específica para pistolas de defesa (de pequeno tamanho, em ação blowback), sendo que, em tese, este cartucho e o 9mm Makarov são os maiores cartuchos para uso nestes mecanismos desaferrolhados – qualquer dúvida sobre isso ver o artigo Balística Interna: Operação em Armas Semi e Automáticas. É um cartucho popular, de baixa pressão, com projétil com diâmetro de 9,04 mm e estojo tipo rimless, de paredes retas, com comprimento total de 17,27mm. Dispara projéteis geralmente ogivais com massa que varia de 5,8 g a 6,1 g (entre 85 e 95 grains), com uma velocidade média de saída na boca do cano de 290 m/s.

O 380 ACP é considerado como sendo o calibre mínimo para uso em defesa pessoal, inferior em potência ao .38 Special com cargas + P, ou até mesmo em algumas configurações padrão. Apesar de ser menos potente para a função, chegou a ser usado como cartucho militar oficial de vários exércitos (dentre os mais importantes, a Itália, a Suécia, e a Tchecoslováquia) foi também cartucho oficial de várias polícias européias. Foi, e ainda é, usado em armas de marcas famosas como Astra, Beretta, Bergmann, Browning, Colt, CZ, FN, Frommer, Lhama, Remington, Savage, Star, Taurus, Walther, e até mesmo em algumas submetralhadoras como as Ingram MAC-11 e a CZ Skorpion.

Mas se o .380 é um calibre sobejamente conhecido, constando seus dados em inúmeros livros e páginas da web especializados em munição, escrever sobre ele não seria chover no molhado? E, afinal, o que tem a ver o 9 mm Curto (ele é chamado assim para diferenciá-lo de outro calibre desenhado por J. M. Browning em 1903, o 9 mm Browning Long), com este Calibre 9 mm Kurz? Bem, apenas porque (como certamente a maioria deve saber) O .380 ACP é o mesmo 9mm Kurz (kurz significa ''curto'', em alemão). Acontece que como outros calibres, o .380 teve e tem várias denominações, a depender da língua do país usuário, e das características comerciais do momento. São eles: .38 Colt Auto Hammerless (mas não confundir com o .38 ACP, que é outro cartucho, mais longo), 380 C.A.P.H. , .380 Browning Short, .380 Auto, .380 ACP (Automatic Colt Pistol), .380 Auto Webley, 9 x 17 mm, 9 Beretta m. 1934, 9 mm Browning, 9 mm Browning Short, 9 Browning kurz, 9mm Court (em francês), 9 mm Corto (em italiano), 9 Holland P.S. nº21, 9 mm Kratak (em iugoslavo), 9 mm Kurz, 9mm Scurt (em romeno), 9 pistolen-patrone 400 (h), 9mm selbstlade – pistole, 9 mm Short, DWM 540, GR 929, SAA 4865.

Sim, todos estes são nomes do nosso amigo .380 ACP expressos tanto em centésimos ou milésimos de polegadas (sistema americano e inglês), ou diretamente em milímetros no sistema métrico europeu continental, usados em diferentes épocas. Mas, e daí? Daí que, na verdade, o que motivou este texto foram notícias que infelizmente o desconhecimento técnico de algumas autoridades policiais Brasil afora, em vários, repetidos e lamentáveis episódios têm levado ao cárcere pessoas detidas em flagrante pela “posse ou porte ilegal” de armas timbradas como sendo do perigoso e desconhecido calibre 9mm Kurz. Agem então os agentes da lei como se este calibre estivesse inserido no Capítulo III, Art. 16. do R-105, entre as armas de uso restrito, talvez por simples desconhecimento de certas facetas da oplologia, terminologia de cartuchame, e balística forense.

Geralmente as armas que mais se encontram marcadas como 9mm Kurz em nosso país são as da marca Walther, nos modelos PP, PPK, e PPKS. Em muitos dos casos dessas apreensões, algumas destas armas estavam registradas legalmente, o que piora o absurdo legal. Por outro lado, há casos de outras armas alemãs marcadas como 9mm Kurz, mais antigas e mais raras, que nem por isso são impossíveis de se encontrar nestas paragens. Calibre ilegal não é, pois foi liberado pela Portaria n° 1237, de 01 de dezembro de 1987, e bastaria que as autoridades policiais, ou seus prepostos, lessem a lei com mais cuidado (pois a antiga portaria já cita esta denominação), que tal dúvida sobre a legalidade do 9mm Kurz seria sanada imediatamente:


PORTARIA MINISTERIAL Nº 1237

Exclui pistolas semi-automáticas calibre 9mm curto e respectivas munições da classificação de uso proibido e as inclui na classificação de uso permitido.

O ministro de estado do exército, de acordo com o disposto nos art. 21 e 159 do regulamento para a fiscalização de produtos controlados (R105), aprovado pelo decreto n° 55.649, de 28 de janeiro de 1965, e com o que propõe o departamento de material bélico, resolve:

1. excluir as pistolas semi-automáticas calibre 9mm curto (9mm "kurz", "corto", "short" ou .380 auto) e respectivas munições da classificação de uso proibido constante do art. 161 do R-105.

2. incluir o citado material na classificação de uso permitido, constante do art. 162 R-105.

Leônidas Pires Gonçalves, Ministro do Exército.

Esta antiga lei foi englobada no R-105 reformulado de 20 de novembro de 2000, no Capítulo III, Art. 17. na parte sobre armas de uso permitido:

I - armas de fogo curtas, de repetição ou semi-automáticas, cuja munição comum tenha, na saída do cano, energia de até trezentas libras-pé ou quatrocentos e sete Joules e suas munições, como por exemplo, os calibres .22 LR, .25 Auto, .32 Auto, .32 S&W, .38 SPL e .380 Auto.

Às vezes até a simples posse de cartuchos (geralmente alemães) timbrados como 9 mm K (sendo o “K “ a abreviatura de Kurz, logo 9 mm curto), é o suficiente para a prisão, pois o desconhecimento técnico obriga a seguinte dedução: “se é um “9mm K” não pode ser o nosso anêmico .380...”

Então que fique bem claro que o 380 ACP é o mesmo 9 mm Kurz timbrado nas pistolas e cartuchos alemães, que tantas vitimas de coação ilegal fez entre civis, e que ofuscou carreiras de delegados e promotores por prisões equivocadas (no tocante apenas a ser classificado como calibre de uso “restrito”, fique isso bem claro...), por um mero detalhe técnico de classificação da nomenclatura, mas não de somenos importância no esclarecimento da verdade num laudo pericial, ou num processo penal. Este artigo não trata de criticar o trabalho dos nossos abnegados policiais, sempre tão relegados a segundo plano, operando em condições difíceis, ou ao de qualquer agente público, tem sim, como único escopo, auxiliar e prestar um esclarecimento eminentemente técnico, um auxilio ao verdadeiro trabalho policial ou judiciário abalizado na técnica e na lei.

Espero sincera e modestamente ter acrescentando algo à este polêmico assunto.