segunda-feira, 22 de junho de 2009

A arma de Milemete

Walter de Milemete, este nome evoca uma figura importante para a Oplologia e quase desconhecida no Brasil. Em um manuscrito de 1326 reputado como de sua autoria, intitulado "De Nobilitatibus, Sapientis, et Prudentia Regum" (“sobre a fama, sabedoria e educação dos reis") e apresentado ao Rei Edward III quando da sua ascensão ao trono da Inglaterra, aparece numa iluminura (reproduzida acima) a primeira representação visual conhecida de um rudimentar canhão (ou arma de fogo).

Milemete, pelas poucas informações que se tem dele, foi um Mestre, estudioso, eclesiástico e pároco no condado da Cornualha (situada na extremidade do sudoeste de uma península da Inglaterra), e seu famoso manuscrito destinado a aprimorar a educação do Rei Edward III (que sucedeu Edward II depois de seu assassinato em 1327), versando sobre temas gerais como filosofia, política, religião, virtudes morais, o bom governar, a administração pública, as artes da guerra, etc, está conservado na Biblioteca da Igreja de Cristo em Oxford. O texto era ricamente ornado com desenhos variados (iluminuras) mostrando heráldica, cenas de flerte, combates, torneios, caçadas, animais mitológicos e animais híbridos com o homem...

O desenho mostra o que alguns denominaram depois como a “Arma do Monge”, um pequeno canhão em forma de pêra ou vaso com quase um metro de comprimento, apoiado numa mesa sem fixação aparente (e o recuo?), disparando uma seta. O soldado que o maneja, usa um pedaço de ferro em brasa para inflamar a carga de pólvora (ou substância análoga).

Registros escritos de armas existem recuando mais no tempo, em datas como em 1281, o gentil-homem francês Giovanni D’ Appia (Reitor do Papa Martinho IV, enviado para sufocar o governo antipapal constituído pelos Gibelinos em Forli e Cesena), foi testemunha da incrível presença de “fusiliers ou schioppettieri” entre os soldados do famoso conde Guido de Montefeltro (de Urbino, Itália). Na mesma campanha na defesa de Forlì, Itália, durante o cerco que durou de 1281 a 1283 foram usados canhões apelidados de “os jarros de Forli”, certamente devido talvez ao seu formato de “pêra ou vaso”, que nos remetem de imediato a visualização da arma do manuscrito de Milemete. Este tipo de arma seria chamado pelos italianos pelo seu formato peculiar de “vasi”, e pelos franceses de pot-de-fer. Neste mesmo período (1326) o poderoso Conselho de Florença ditava as suas rígidas regras ao que parece, para a manufatura de canhões e balas de metal (“pilas seu pallectas ferreas et canones de metallo”). Em 1327 o mesmo Edward III usou canhões contra os Escoceses, e na Guerra dos 100 anos na batalha de Crécy em 26 de agosto de 1346, os ingleses teriam usado três canhões contra os franceses. Outra figura de um pequeno canhão aparece no manuscrito “Belli Fortis”, da autoria de Konrad Kyeser, escrito ao redor de 1400.

No tocante a armas que disparavam dardos ou setas como a mostrada na ilustração de Milemete, um manuscrito de 1338 (conservado na Biblioteca Nacional De Paris), cita que na cidade francesa de Rouen usaram-se "pots de fer à traire garros de feu" ou seja " panelas ou potes de ferro para atirar setas de fogo. Corroborando isso outros registros também falam de setas de madeira providas com penas de metal. São citadas no inventário real (English Privy Wardrobe) da Torre de Londres no ano de 1377, centenas de grandes setas metálicas com empenagem (cauda), provavelmente de estanho, ao lado de 22 canhões (e numa lista posterior arcabuzes ou mosquetes) que disparavam o mesmo tipo de projétil, os mesmos inventários da Torre de Londres citam ainda quatro" "moldes vocate formule pro pelletis infudendis", ou moldes para fundir as “balas” (vocábulo popular para projétil e derivado do verbo grego ballo – atirar, lançar, arremessar) como também 1348 libras de " Plumbi em pellottis" ou - 612kg de chumbo em pelotas. No inventário real de 1388 estão registrados 3 “parvos vocatos” (armas ou canhões de mão).

Uma arma bem semelhante à de Milemete seria a bombarda de Loshult, na Suécia (foto abaixo), datada como por volta de 1350, uma pequena miniatura de canhão de 30cm de comprimento em formato de vaso como o da iluminura.
Daí em diante aparecem os “handgonnes”, algo como “arma de mão”; no inglês arcaico Gonne = gun, arma. (que vem da palavra arcaica engyn, ou máquina), No idioma alemão tais armas primitivas eram chamadas “Faustbüchsen”, “Faustrohr”, hakenbüsche (literalmente “arma com gancho”, tendo esta denominação se popularizado e criado o posterior termo Arcabuz para armas mais modernas), "Büchss“ e “Büss, sendo estes dois últimos termos incrivelmente relacionados com a caixa de esmolas de madeira das igrejas!! Palavra provavelmente derivada do latim medieval Buxis (“caixa", que geralmente era feita com madeira de Buxo). Alguns dizem que pelo formato quadrado das coronhas de então, que teria alguma semelhança com a caixa de óbolos. Em dinamarquês medieval tais armas eram conhecidas por "Bösse".

A evolução natural levou as armas portáteis a mudar a forma de um pequeno vaso, óbvia redução em escala de uma bombarda maior, para tubos metálicos cilíndricos ou com facetas, alongados ou curtos, alguns equipados com ganchos (que deveriam ser apoiados nas muralhas e frestas dos muros dos castelos), e inseridos na ponta de um cabo de lança pra fazer fogo (e assim são vistos em vários desenhos e tapeçarias medievais), ou amarrados com tiras de couro ou metal a pedaços de madeira à guisa de primitiva coronha. Nesta conformação de arma com gancho, se apresenta o curioso hackenbüsche conhecido como “arma de Morko” da Suécia, com sua face humana barbuda e suas inscrições de motivos religiosos, e o de Vedelspang, em Schleswig, ou o cilindro curto achado no castelo de Tannenberg, ambos da Alemanha.


Tempos depois seriam incorporadas aos arcabuzes as verdadeiras coronhas de madeira envolvendo o cano a e culatra (inspiradas a princípio nos modelos usados nas bestas e balestras), as massas de mira, e em seguida a revolucionária chave de mecha ou serpentina (o “matchlock), que substitui com vantagens táticas e técnicas o infame uso do ferro em brasa ou um segundo operador portando um pedaço de madeira ardente para incendiar a teimosa carga de pólvora negra. Sobre este mecanismo, suspeita-se que foi concebido em Liége-Bélgica por volta de 1375, (embora o códice Vindobana, um manuscrito da cidade de Viena do início do Séc. XV, já ilustrava uma arma equipada com uma grande serpentina em forma de “Z”).


Com a evolução da primitiva metalurgia e os novos experimentos de pólvoras mais estáveis e melhores desenhos de câmaras de disparo, puderam finalmente as armas de fogo perfurar as armaduras (sendo estas reforçadas ao máximo, ao limite de maneabilidade do conjunto homem/cavalo). Os canhões destruiriam as paredes dos castelos, terminando por tornar seus muros inúteis. O arco, a balestra, a catapulta, foram paulatinamente sendo substituídos, e as armas de fogo envoltas no fumo da pólvora caminhariam então para a sua longa história, como companheiras de desdita do homem na sua saga pela terra, chegando à soberba sofisticação e precisão das armas dos dias atuais, que incluem até o titânio, cerâmica e polímeros em sua construção, coisa que Walter de Milemete jamais imaginaria quando desenhou para a posteridade a visão da experiência de um disparo de um tosco canhão apoiado numa frágil mesa...

Um comentário:

  1. maravilha!
    JAMAIS tinha visto algo assim, sou oplólogo de carteirinha e desconhecia esta parte da história
    VALEU CAMARADA!
    parabens pelo trabalho de pesquisa!

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