domingo, 30 de agosto de 2009

O “corpo fechado” e as armas de fogo





Uma das mais curiosas relações do homem com as armas de fogo é justamente o paradoxo que logo depois de seu aparecimento se tentou minimizar ou mesmo anular o efeito destruidor de seus projéteis. As primeiras armas foram contemporâneas das armaduras medievais e estas últimas pouco puderam fazer para proteger seus usuários, pois apesar do paulatino reforço em sua chapa para aguentar os disparos dos iniciais arcabuzes (armas com peso ao redor de 5 kg e com calibre que podia chegar aos 2 cm), em breve não resistiriam a perfuração causada por um projétil do mosquete. O brutal mosquete foi sucessor do menor arcabuz, geralmente era uma arma de 10/12 kg de peso, com calibre em torno de uma polegada -2,5 cm- e dizem que foi introduzida na Espanha no final do século XVI, devido ao peso tinha de usar como auxílio para a pontaria uma forquilha. Os soldados que a usavam ficariam eternamente famosos com o romance “os Três Mosqueteiros” de Alexandre Dumas.

Malogrando-se as tentativas de se evitar os ferimentos e mortes no plano físico, partiu-se em seguida para o plano etéreo, e se apelou para magia, e é deste assunto que falaremos.

Existem muitas crendices populares sobre armas, como por exemplo na França, que em meados dos séculos XVIII e XIX acreditava-se que havia “balas encantadas” que perseguiam o alvo até abatê-lo. Dentre as nacionais, como as que dizem que a depender do alvo a arma perdia a capacidade de atingir com precisão ou mesmo disparar, como atirar numa caçada contra um animal encantado que na verdade podia ser um dos seres elementais das nossas florestas como o curupira, a caipora, o mapinguari, desgraçaria ou mesmo causaria a morte do caçador. Atirar contra fantasmas, contra lobisomens e mulas sem cabeça, dentre outras criaturas fantásticas que habitavam as florestas e os sertões místicos etc. Atirar contra um “murundu” (cupinzeiro) estragaria a precisão da arma. Dentre muitas outras superstições se enquadram as crenças (principalmente no nordeste do Brasil) do “corpo fechado”, que era invulnerável aos ferimentos de facas e armas de fogo, ou capaz de enganar ou desnortear o perseguidor ou assassino através de fórmulas mágicas, patuás ou “breves”. Um dos mais célebres portadores de “corpo fechado“ foi o cangaceiro Lampião, que teria sobrevivido a diversos ferimentos de arma de fogo.

Conseguia-se o corpo fechado de várias maneiras, a mais comum era com o uso de uma poderosa e secreta oração que podia ter vários efeitos: impedia que a arma do adversário disparasse, causando negas de percussão, ou caíam as balas alguns metros após deixar o cano, ou a depender da força da magia saía água do interior do cano!! Evitavam que o inimigo visse com clareza o possuidor da “mandinga” (o famoso “envultamento”), embaralhando a sua visão causando tonturas ou alucinações.

Meu querido avô me contava dentre as várias e coloridas estórias que ouvi dos mais velhos na minha meninice, quase todas indo do período final do Séc. XIX até a “República Velha”, sobre um cidadão que se metamorfoseava - aos olhos do observador apenas, diga-se de passagem - em um pé de pimenta. Outro caso que ilustra bem este tipo de mandinga me foi contado pelo “seu” Anísio, um descendente direto de escravos que foi trabalhador agregado da fazenda de meu avô, que um cruel e famoso pistoleiro do norte de Minas Gerais estava sendo perseguido por um camarada disposto a vingar-se. Numa estrada deserta os dois oponentes se encontraram a la Western spaghetti, quando a carabina “papo amarelo” foi empunhada pelo vingador, seus olhos são obscurecidos por uma nuvem negra, não morrendo este por pouco, em outro encontro quase fatídico desta vez numa vila, o assassino é protegido por um grupo de crianças que saídas do nada fazem barreira contra as balas da 44, enquanto o maléfico vai embora rindo. A magia se quebra quando o “vingador” encontra na casa da amante do pistoleiro uma peça de sua roupa, e com ela amarrada à boca do “rifle” finalmente acerta-o, matando-o, o cadáver do assassino ficou encostado numa árvore, morreu de pé, tendo seus dedos sido quebrados para se poder retirar o revólver...

Outra maneira de se conseguir o corpo fechado é usando um patoá, patuá (ou “breve”) palavra certamente derivada dos dialetos franceses “patois” (cuja pronúncia é mesmo patoá), é em síntese um amuleto em forma de saquinho que contém uma oração, ossos, cordões bentos, ou outro sortilégio. É carregado junto ao corpo, ou nas vestes do portador. Este também permite “envultar” das diversas maneiras já elencadas acima ou fazer armas falharem. Sobre isso meu avô contava que na Serra do Vitorino (Bahia), lá por volta de 1920, dentro de uma vendinha começou uma confusão, três elementos empurram um outro para fora do boteco, e em seguida já no terreiro descarregam suas “rabo de égua” (grandes garruchas de percussão) contra ele, de dentro da fumaceira da pólvora negra saiu o camarada ileso!! Este “dito cujo” em seguida arranjou confusão com um “caboclo cabo verde” (mulato de cabelo liso, mestiço de índio) e armou para matá-lo, quedou-se acocorado dentro do ranchinho de pau-a-pique do caboclo próximo a porta dos fundos, mas o branco de sua camisa destacou-se num dos buracos do barro denunciando-o, e foi ali que a boca da garrucha do índio, que o havia visto a distância por causa disto, foi colocada, de um tiro a queima-roupa nas costas o infeliz desabou mas não morreu de imediato, levado a vila lá resistiu por algumas horas. Morria... A vela era colocada nas suas mãos e num gemido gutural e medonho retornava do mundo dos mortos com muito sofrimento, chamado para atender o caso meu bisavô Teófilo Carvalho (o sangrador da vila, fazia sangria, abria abscessos etc, numa época difícil onde não haviam médicos formados por perto).
- Seu Tiófilo, tira o que está em meu bolso esquerdo, ele não me deixa ir...
- Olha aí, vai confiar nestas porcarias, pois foi bem no lugar do patuá que a bala entrou.

Logo que retiraram o patuá o camarada deu um gemido medonho e foi-se embora para de onde não se volta...

Colocaram como de praxe a moeda na boca do defunto (simpatia para que o seu assassino não pudesse ir longe, por causa dos pés inchados ou ficasse andando em círculos, certamente isso encontra eco nos antigos ritos gregos mortuários de pagar a travessia do rio Aqueronte ao barqueiro do Hades: Caronte, adaptado para os costumes patriarcais e violentos do nordeste e Brasil agrário). O caboclo assistiu do mato as exéquias do valentão, esperou o sepultamento, retirou a moeda do cadáver, e como diz o povo caiu “na arca do mundo”...

Podia-se ainda conseguir o corpo fechado quando se usava imagens ou objetos sagrados inseridos na própria carne (pequenas imagens de santos por exemplo), assim fez um camarada que encomendou a outro que ia a Roma, uma “lasca do santo lenho” (a santa cruz original), o outro não achando lhe deu uma lasca de madeira qualquer, com o que ele passou a barbarizar com atitudes de valentão, o compadre espertalhão ficou curioso com tais façanhas feitas com um reles pedaço de pau, e esclarecido o engodo acabou a fé do suposto recente valentão, que voltou a ser “mofino” (covarde).

Deve-se esclarecer que o corpo fechado ainda podia ser obtido pelos rituais da Umbanda e do Candomblé (os “catimbozeiros” das caatingas), por simpatias, e além de proteger contra armas de fogo e brancas servia ainda pra adivinhar emboscadas, proteger contra mordidas de animais hidrófobos ou venenosos, mau olhado, bruxarias, evitar coices e amansar animais bravos... Mas em nenhum dos casos podia-se atravessar rios ou cercas de arame farpado, pois nessa situação ficavam vulneráveis aos tiros dos inimigos...

Se tudo isso é verdade não sei dizer, mas por via das dúvidas fico com a opinião de Shakespeare em Hamlet : “Há mais coisas nos céus e na terra, Horácio, do que sonha a tua vã filosofia".








domingo, 9 de agosto de 2009

Farinha, toucinho e “bala de rife”...

Particularidades do comércio de armas no Brasil do início do Séc. XX

Típico Armazém onde se vendiam todos os tipos de produtos, Lençóis Paulista - SP, 1908.



O Brasil é um país de dimensões continentais e isso é um fato mais do que conhecido. A distância entre o litoral e os mais afastados rios, florestas, sertões, chapadas, pantanais, e demais regiões do interior, por vezes é imensurável. O progresso seguiu naturalmente o rastro dos bandeirantes, jesuítas, tropeiros e boiadeiros, e as cidades e vilas foram se criando e estabelecendo as fronteiras deste colosso. Obviamente foram necessárias armas de fogo, que, acompanhando a marcha dos desbravadores, serviam para a defesa naquelas imensidões sem lei e sem civilização, e para a caça sempre abundante em nossas matas, sertões e cerrados. Mas depois da colonização e do povoamento, com a construção das trilhas e estradas, devia-se prover de suprimentos as vilas e cidades; era necessário o comércio de todos os tipos de produtos, incluindo-se aí o de cutelaria, ferramentas, armas e munições.

Da segunda metade do Séc. XIX ao início do XX se alguém entrasse em um armazém (a conhecida “
venda” em algumas regiões, embora alguns defendam que o nome armazém defina um comércio maior e mais sortido) para fazer a compra mensal não causaria nenhum espanto se na sua lista, constassem além de farinha, toucinho, querosene... balas de “rife” 44, pois eram produtos necessários e encontradiços em qualquer loja de interior. Indo mais além e divagando um pouco (ou muito), seria engraçado poder dizer que guardadas as devidas proporções, as antigas “vendas” tinham a mesma filosofia das atuais redes de grandes supermercados: prover o cliente com absolutamente TUDO que ele precisasse como mantimentos, bebidas, artigos de armarinho, louças, utensílios domésticos dos mais variados, tecidos, papelaria, calçados, perfumaria, artigos agropecuários, fumo, artigos de pesca, querosene, cutelaria, ferragens e ferramentas, incluindo-se aí em muitos casos armas e munições.

Naquele momento da história do Brasil (até o fim dos anos 20), nas capitais e nas nossas mais importantes cidades, grandes lojas e firmas de importação traziam o melhor da Europa e América do Norte em todos os
campos. Senhoras e cavalheiros podiam usufruir a moda e refinamentos ao mesmo tempo em que eram lançados nas cosmopolitas metrópoles estrangeiras, a Belle Époque, uma época de fato áurea...

Mas o Brasil não fabricava costumeiramente armas naquele momento, e pode-se citar o anuário d
o Departamento de Comércio Exterior dos EUA em 1914 como importadores e comerciantes de armas do Brasil: no estado da Bahia- Brandão, Mário Dias, rua Guindaste dos Padres, 26, Machado, Soares & Co., Rua dos Droguistas, Palmeira, Beltrão & Fernandes, Rua Conselheiro Saraiva, 31. Em Campinas-SP- Palmieri, F. A., Rua 13 de Maio, 36. No Ceará- Viúva Villar &, Filhos, Rua Major Facundo, 72, João Tibúrcio Albano, Rua Floriano Peixoto, 46. No Pará eram Antunes, Simões & Co., Rua João Alfredo, 95, Araújo, Martins & Co., Boulevard da República, 9, Agostinho da Silva & Co., Rua João Alfredo, 36, Soares & Co., Rua 28 de Setembro, 192, Cunha, Cerqueira & Co., Rua 15 de Novembro, 53, J. A. Monteiro, Rua 15 de Novembro, 3, Joaquim L. Cerqueira & Co., Rua 15 de Novembro, J. A. da Silva Ferreira & Co., Leite Junior & Co., Rua João Alfredo, 18, Martins Vieira, Rua 15 de Novembro, 43 , Moreira, Gomes & Co., Rua 15 de Novembro, 7. Em Pelotas-RS- Bromberg & Co., Viúva. Behrensdorf & Co., Scholberg & Co. (esta firma ao que parece por algum tempo teve alguma associação com a Casa Laport do RJ), ainda no RS em Porto Alegre-RS encontraremos Bromberg & Co., Viúva Behrensdorf & Co., João Matuscheck. Em Rio Claro-SP, temos a Casa Gaetano Castelhano & Cia. No Rio de janeiro- Barbosa & Mello, Rua do Hospício, 154, Carneiro & Cia., Braga, Rua Visconde de Inhaúma, 03, Companhia Americana de Sellos-Coupons, Avenida Rio Branco, 10, Companhia Eusébio de Rocha, Rua do Theatro, 3, Dietrich, Paulo, Rua da Alfândega, 48, Pontes, A. G., Becco da Lapa dos Mercadores (sendo seu agente para os EUA a American South American Shipping Co., 78-80 Broad Street, New York City), Hasenclever & Cia., Avenida Rio Branco, 69-77, Hopkins, Causer & Hopkins, Rua Theophilo Ottoni, 95-99 (ramo da Hopkins, Hauser & Hopkins, 48 St. Paul's Square, Birmingham, England), Kramer & Cia., Rua General Câmara, 23, a famosa Emile Laport & Cia., Rua da Alfândega, 79 (sendo seu agente para os EUA, Markt & Schaefer Co., 193-195 West Street, New York City), Mestre & Blatge (esta era uma firma francesa precursora da atual "Mesbla", era especializada no comércio de máquinas e equipamentos), G. Laport & Cia., Rua dos Ourives, 34. Lucas, Armand, "Union Commerciale Franco-Bresilienne”, Rua Didimo, 14, Machado, Edmundo, Rua Visconde de Inhaúma, 64, Pereira & Cia., Bruggeman, Rua da Alfândega, 92, Pinto Irmão & Cia., A., Rua da Carioca, 7, Stoltz & Cia., Herm., Avenida Rio Branco, 66-74 (sendo seu agente para os EUA Hesslein & Co.,43-45 White Street, New York City), Thomas & Cia., A., Avenida Rio Branco, 14 (ramo da A. Thomas & Cie., 15 Rue Martel, Paris, France), Veiga & Cia., Mayrink, rua Municipal, 21 (agentes, Beatty Altgeldt & Co., Manchester, England; Thomas Turton & Son, Sheffield, England; Emil Gaua, Hamburg, Alemanha), e Vivaldi & Cia., Rua S. Bento, 14-16. Em Santos-SP, Ferreira de Souza & Co.,Guimarães, Antônio M. Rios & Ferreira, Pedro dos Santos & Co., Zerrener, Billow & Co. (com escritório em São Paulo). Em São Paulo- Armbrust & Filho, Largo de São Bento, 14, Baldan, Antonio, & Filho, Rua Florêncio de Abre u, 44, Campos, A. S., Rua de São Bento, 39ª, Duarte, Serva & Co., Rua Libero Badaró, 11, Araújo de Martins, & Co., Rua do Rosário, 15, Miguel, Ângelo Monte Pietro, Rua de São João, 127, Quilici & Filho, Av. Rangel Pestana,288ª, Riechmann & Co., Caixa do Correio, 133, Sarli, Luiz, Rua de São João, 49, Sarli, Nicolino, Largo de São Bento, Sil va, D. Roque da, Rua de São Bento,22ª, Zerrener, Billow & Co., Rua de São Bento, 81. E por fim em Vitória-ES, Frederico Dahlinger, na Avenida da República.



Tais representantes comerciais tinham por muitas vezes sócios estrangeiros ou representavam fábricas (no fim do Séc XIX o Rio de Janeiro foi o paraíso dos armeiros belgas), importando diretamente grande quantidade de armas, além de em alguns casos cutelaria, ferramentas, ferragens e artigos de montaria (sendo corrente entre os colecionadores paulistanos uma “lenda urbana oplológica” de que haveria uma tradicional e antiga loja de ferragens no centro de São Paulo, que teria algumas caixas originais de Winchester 73 ainda lacradas...). Assim veremos em diversos catálogos além de pistolas de dois canos, revólveres, pistolas semi-automáticas, carabinas e até mesmo fuzis Mauser e Mannlicher, chegando todas estas armas a serem vendidas por catálogo e pelo reembolso postal (!), sendo a legislação brasileira da época mais moderna e liberal que a atual, não havendo grandes restrições a tipos de armas e calibres...

Mas se fuzis e mosquetões tipo militar sempre foram armas bem mais caras e restritas a um público mais específico, pois eram a espinha dorsal dos arsenais dos coronéis, seus jagunços, e dos cangaceiros, as carabinas Winchester eram a armas de todos (variando das raríssimas mod. 1866 às raras 1894, até às popularíssimas mod. 1873 - a “papo-amarelo” - e as mod. 1892), uma verdadeira praga, estas sim vendidas literalmente em qualquer armazém de “secos e molhados” (daqueles saudosos com 6 ou 8 portas na fachada). As carabinas e Fuzis de alavanca Marlin (diversos modelos) e Colt Lighting, inclusive em calibres totalmente inusuais do tão comum 44-40 também aparecem, mas não são comuns por aqui, e na minha modesta opinião se vê um deles para cada 10 Winchester (dizem que carabinas Marlin são algo mais encontradiças em algumas regiões de Minas Gerais, pois naquela época um comerciante local comprou um grande lote de Marlin). Dividindo a preferência com a Winchester as espingardas também sempre foram armas de muita utilidade na caça e proteção do sítio e da roça do caboclo ou mateiro, sendo bastante populares as de percussão (até quase totalmente por motivos econômicos, pois a pobreza grassava), substituídas paulatinamente pelas que usavam cartuchos à medida que a maior industrialização fazia o preço destas baixar. Até alguns anos atrás (os anos “pré-estatuto”) espingardas de percussão artesanais (as “pica-pau”, “rabo de cotia”, “rela de banda” dentre outros pitorescos nomes) ainda eram vendidas livremente em feiras do Norte/Nordeste do Brasil. Para defesa as armas preferidas também por motivos econômicos, eram modestas Garruchas de 2 canos raiados, sendo as de origem belga e espanhola em calibres 320, 380 e 440, fartamente encontradas em nosso meio. Revólveres e pistolas semi-automáticas eram bem mais caros, daí por este motivo também as já citadas armas belgas e espanholas (a maioria cópias de famosas armas americanas e européias), terem tanta preferência entre nós, pois simplesmente “funcionavam” e eram as mais baratas Houve época até que nossos matutos ficaram exigentes e queriam somente usar munição de origem
americana fabricada pela Remington e Winchester, em detrimento a munição nacional da época, que tinha precária qualidade. (sabidos eles!).

Não devemos nos esquecer dos queridos mascates e caixeiros viajantes que percorriam no lombo de mula e cavalo os caminhos tortuosos e inacessíveis do sertão, da mata, e da serra, levando mercadorias a esquecidas vilas e fazendas localizadas no “fim do mundo” (segue uma alusão aqui a persistente alcunha de “turco” aos imigrantes do Líbano e da Síria que ocuparam por muitos anos esta função), e que segundo consta muitas vezes trouxeram dentre as suas encomendas armas e munições, até mesmo caixas lacradas que iam parar nos arsenais privados de coronéis.

Assim, embora obviamente não se deva ter a falsa impressão de que se pudesse comprar armas em qualquer esquina (a grande maioria dos comércios vendia apenas pólvora, espoleta e chumbo), podia o civil comum nos pontos mais distantes de nosso país usufruir em qualquer bom armazém ou loja do que de melhor existia na armaria mundial, e de fabricantes de todas as origens (e certamente também com que existia de pior, aliás, se vê cada coisa estrambótica que não se sabe como entrou aqui).

Ressalvo ainda que nos lugares onde existem colônias específicas de imigrantes, há armas que não são vistas em outras regiões, assim, por exemplo, veremos no sul do Brasil antigos fuzis de tiro ao alvo tipicamente alemães e/ou suíços, ou a posse de revólveres tipo Abadie em mãos de imigrantes portugueses, etc.

Tal situação liberal mudou depois da revolução de 1930, com a publicação do decreto do exército R-105 que proibiu quase tudo, desarmando as unidades e arsenais da Guarda Nacional em mãos dos coronéis, obviamente com o objetivo claro e prático de truncar as tentativas de contra-revolução (e mostra nestes 79 anos do R-105 claramente a falência da pura e simples proibição, aliás, leis nunca impediram os homens maus de conseguirem suas armas, mas aos bons sim... Um caminho mais lógico seria a legalização mais abrangente e um controle mais efetivo e coerente destes artefatos).

Bons e honrados tempos eram aqueles, onde se podia além da farinha e do toucinho pedir ingenuamente (não havia o banditismo que há hoje, e quase todo cidadão era acima de qualquer suspeita, pois um fio do bigode de um homem era dado como garantia e considerado um “contrato” comercial, mesmo nas famílias mais simples a educação, o trabalho, o respeito ao próximo e a honestidade eram valores primordiais) e legalmente (pois a legislação era branda e coerente) ao simpático “vendeiro” alguns cartuchos para a nossa carabina Winchester ou Marlin cal. 30-30.